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Série Fantasia Barroca

Um dia, ao folhear as gravuras mais recentes, percebi que anjos e penas haviam invadido minha produção, e me perguntei: como isso começou? Como uma série artística é formada?
Revolvendo as memórias, a primeira gravura datada, Um anjo para Mestre Antônio, me falava do dia em que meu Mestre Kazuo Iha me ofereceu uma pedra para desenhar e passar o tempo, porque eu havia chegado muito cedo para a prova de entrevista para o mestrado. Os estudos sobre o Colonial e o Barroco brasileiro, vivos na mente, foram a motivação, gerando essa homenagem ao escultor e arquiteto Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (Ouro Preto, c.1730 – 1814). As gravuras que se seguiram, confirmavam minha tese: o que, o porquê e o como estavam alinhados – caso encerrado.

Todavia, num outro dia, arrumando matrizes no ateliê, encontro num taco gravado um anjinho de cabelos encaracolados e carinha de sapeca, apenas contemplando de mãos postas. Era Um anjo para Vitor, gravado quando meu caçula nasceu, em data bem anterior a Um anjo para Mestre Antônio. Os olhinhos do anjo me encaravam e pareciam perguntar: e eu, onde me encaixo nessa sua história de série com princípio, meio e fim? Pois bem, não encaixava, porque ele já estava lá, esvoaçando em meu pensamento, antes dos argumentos racionais sobre o Barroco. Certamente que memórias de infância e heranças religiosas culturais se entrelaçam com o Barroco em meu imaginário: me agrada esta figura intermediária entre o homem e o divino. A figura do anjo chega ao Brasil no período colonial, como figuração importada da espiritualidade humana, sobrevive a esse tempo e nos alcança na contemporaneidade. A arte barroca no Brasil tem o emblema do trânsito entre a primitividade dos indígenas e a modernidade de uma nação em formação. Entretanto, sentia que a presença dos seres angélicos na minha gravura ultrapassava o diálogo com o Barroco. Carregada de memórias e afetos, sobrevoava o tempo sobre as asas dos anjos, e desses devaneios trazia penas como recordação. Simples e belas, símbolo de leveza e, no meu entender, também de desprendimento, a pena me remete a algo de que se despoja quando substituído por outro novo. A madeira utilizada para gravar Fantasia Barroca foi o fundo do berço do Vitor – um gravador não descarta madeira assim tão fácil! Um anjo-guardião abre suas asas potentes sobre 4 anjos-meninos: 3 deles são releituras livres realizadas a partir de obras dos mestres do barroco brasileiro: Mestre Valentim (Serro, MG, c. 1745 — Rio de Janeiro, 1813), Aleijadinho e Mestre Ataíde (Mariana, MG, 1762 – 1830). Chamados de Anjo 1, 2 e 3, são precedidos pelo Anjo 0. Com o rosto em branco, como daqueles painéis vazados em parques de diversão para encaixar o rosto para fotos, o Anjo 0 pode ser cada um de nós. Cinco anjos gravados em madeira de berço: a madeira-matriz é o berço de todas as imagens que o artista queira criar. Penso que a pena seja para o anjo, o mesmo que a pétala é para a flor. Quando lidamos com anjos, nada é por acaso.